SABES QUEM EU SOU?
CRÓNICA: SABES QUEM EU SOU?
O ex-oficial de que vos falarei hoje era uma espécie de “deus” lá no meu Golfe, na década de 90.
Mwata que era, fazia compras no JUMBO e na Loja dos Oficiais, aliás tinha a maior casa do bairro já com ar condicionado naquela altura e muita bufunfa, muito mais do que aquele kota que cozinhava feijão com notas de dólares e muito mais do que aquele que lavava o carro com água mineral!
Fazer uma ultrapassagem a viatura dele era um crime de “lesa pátria”. O homem seguia o outro automobilista, e não importava o local, e quem estivesse, ele esbofeteava-o como se fosse seu filho.
– Quem te mandou me ultrapassar?
Sempre que essa pergunta era ouvida, já sabíamos que algum adulto seria galhetado e para nós crianças, sem a maldade dos adultos, era um deleite ver um kota levar como uma de nós.
Só depois de adulto é que percebi que aquilo que o tal ex-oficial fazia era uma forma de violência contra a dignidade daqueles adultos.
Não é que o kota se arranjou mbora um kizango daqueles bem grande no serviço! Perdeu a patente, o cargo e o emprego.
Os anos passaram como cometa, ele deixou de ser uma ameaça para os automobilistas, até as crianças do bairro perderam o medo. O homem tornou-se num lobo velho e solitário, a matilha o abandonou.
Não sei se eram as lembranças da boa vida, ou a dor de tudo que perdeu, bens, prestígio e amigos, o kota apanhou três tromboses de rajada. Não resistiu, faleceu sozinho, sem a mulher, sem os filhos e sem amigos. Morreu como nós, pobre e mortal.
A vizinhança fez o óbito.
Era mesmo óbito de verdade, não é esses óbitos de agora de se coçar.
No dia do enterro, foram apenas alguns vizinhos e o cão, que também, nunca o abandonou.
A cerimónia foi rápida. Silêncio sinistro num dia e local como aquele (nós africanos somos barulhentos nessas ocasiões). Um acto triste, não devido à morte, mas, pelo silêncio ruidoso. Não havia ninguém para chorar aquele corpo. Um enterro e uma pessoa que seriam esquecidos, sem choro, nem lamentações.
O enterro talvez tenha sido um último gesto de misercórdia da vizinhaça que durante anos, sofreu às mãos daquele indivíduo.
A cerimónia fúnebre foi brevíssima, Mais triste ainda foi chegar à casa do óbito e não ter ninguém para cumprimentar, nem viúva, nem órfãos, ninguém.
Quando olhei naquele sujeito pedrificado na morte, não pude deixar de, naqueles instantes, reflectir na existência humana.
A vaidade, a petolância, o rebaixar o próximo, enfim, pensar que se é mais pessoa que a outra por causa da beleza, nível de escolaridade ou bens materiais é cada vez mais comum nos dias que correm.
Mas, essa atitude de inferiorizar o semelhante é como tentar guardar água na peneira, já que somos pó, e nada levaremos deste mundo!
Texto: José Otchinhelo
Locução: Ana Moçambique
(02.04.2022)