JOÃO PERNA
 

JOÃO PERNA

 

      Na minha infância, existiram figuras que ninguém sabia de onde vinham, mas que acabavam por ser membros da comunidade porque toda a gente as conhecia, um exemplo é a JOANA MALUCA.

 

      Entretanto, não é dessa mulher que vos vou falar, que tenho a impressão que não era a mesma, mas que existia em todos os bairros.

 

      Apresento-vos uma outra figura: JOÃO PERNA.

 

      Homem que apareceu no bairro Golfe, com TRINTA  e poucos anos de idade, na década de 90. Ninguém sabia de onde veio. Entretanto, era daquelas figuras com quem toda a gente se identificava ou pelo menos podia dizer “esse é o nosso João Perna”.

 

      O João era alto, dois metros, feio, olhos e nariz grandes e, a pele tinha a cor dos pneus. Destacava-se na sua estrutura física o pé direito que era de longe muito maior do que o esquerdo, por isso, nunca usou calçados de fábrica.

 

      Como num bairro de verdade, não faltaram as fofocas e os palpites para explicar tão estranho fenomeno, um pé de tamanho 40 e outro 44, os estudiosos do bairro, diziam que é um problema de má formação congénita, já os que frequentavam as casas de quimbandas, diziam que é “um feitiço que lhe lançaram porque gostava de roubar nas lavras” e como corria como chita, o tal bruxo lhe meteu aquela wanga de ter um pé maior que o outro para ficar pesado e não correr muito nas deslocações furtivas sempre que fosse surpreendido numa lavra a roubar mandioca ou milho.

 

      Não importa a razão de ter um pé maior que o outro, era o nosso João Perna!

 

      O João era também uma espécie de palhaço com quem adultos e principalmente crianças brincavam.

      Algumas maldades como atirar pedras nele e dar uma bofetada e fugir eram frequentes, algumas vezes sob o olhar sereno dos pais que não se incomodavam com a conduta dos filhos como se aquele corpo (do João Perna) fosse imune à dor. Dizia, as pessoas divirtiam-se à custa do pobre homem.

 

      Apesar disso, era o João Perna, que acarretava água para as casas onde houvesse óbito e outros ajuntamentos familiares. Era mesmo uma espécie de animal de carga do bairro.

 

      O mesmo João Perna, dava de comer a muitos animais domésticos (na minha adolescência a maioria das casas tinha currais ou animais domésticos). Em alguns casos porcos, patos e galinhas, conheciam melhor o João do que os próprios donos. Ou seja, era quase impossível vivermos sem o João Perna.

 

      João daqui, João dali, ajuda aqui, leva isso… era assim, até o dia que a dona Zefa, mulata, linda, de olhos azuis, que desconcentrava casados e solteiros apelou aos bons préstimos do nosso João, afinal o João Perna era propriedade de todos!

 

      O João regressou da casa da dona Zefa, limpo, com outra roupa e uma garrafa de wisky.

 

      O bairro inteiro fez silêncio. Todos olharam uns para os outros, incrédulos, com as gargantas secas, sabiam que o João fez mais do que simplesmente levar sacos a casa da dona Zefa.

 

      Logo o João? Murmuraram os caenches, os funcionários bancários, e outros que pensavam que tinham mais chances!

 

      Como conversa de bairro não pára, corre parece é atleta dopado, em poucos segundos, o pecado da dona Zefa já tinha chegado até ao Avô Kumbi. A vergonha foi tão grande que em menos de trinta minutos, estava um camião IFA à porta da casa da dona Zena. Ela mudou-se naquele mesmo dia e nunca mais ninguém a viu.

      Mas, confesso que naquele dia, vi crianças, jovens e adultos que se “cachicavam” na dona Zefa, mas, que nunca seguraram a mão dela, lamentar amargamente: Logo o maluco do João!

 

      Se por um lado, ficou o amargo de boca nos homens, por outro lado, as mulheres ficaram curiosas em saber o que o João fez para tirar o juizo da mulher mais fina do bairro. Essa curiosidade teve resposta NOVE meses depois, várias crianças no bairro começaram a nascer com um pé maior que o outro.

 

      O bairro entrou em convulção, os maridos foram tirar satisfações ao João, queriam mesmo dár-lhe uma tareia, mas sem sucesso, o João Perna deixou de morar no bairro. Desapareceu como apareceu no bairro, sem proveniência, sem rumo, sem destino e pior, sem deixar rasto como a dona Zefa. 

 

      Os maridos traídos e os jovens, futuros maridos, de tanta raiva não consumida, meteram fogo ao casebre do João Perna e juraram que se um dia vissem um homem ou um idoso com um pé maior que o outro, seria morto.

 

      Daí em diante, todos os homens passaram a andar com a cabeça baixa porque o rosto das pessoas já não lhes interessava, queriam mesmo era ver se tinham um pé maior que o outro!

 

      Por ter evaporado do bairro e anos depois não ser visto, muitos passaram a acreditar que o João Perna era um era cazumbi.

 

      Confesso que até hoje, ainda me sinto tentado a ver o tamanho dos pés dos idosos que se cruzam comigo!

 

 

 

      JOSÉ OTCHINHELO

 

       (21.08.2021)

 

 

Data de Emissão: 21-08-2021 às 10:00
Género(s): Crônica
 

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