Intervenção na Conferência da UCAN sobre Processos de Democratização

Intervenção na Conferência da UCAN sobre Processos de Democratização.

9/06/22

Comunicação apresentada na Conferência sobre os Processos de Democratização
•Reginaldo Silva
Mais uma vez temos a “média” e os jornalistas no centro do furacão, considerando que eleições em Angola significam crise política garantida, com direito a bónus e tudo, a ter em conta o que se tem passado entre nós desde 1992, quando os angolanos votaram pela primeira vez, com todas as consequências desastrosas que se conhecem e que só de pensar nelas até nos causam calafrios, tamanho foi banho de sangue (sobretudo em Luanda) e de devastação um pouco por todo o país que se seguiu ao pleito com que se enterrou a República Popular (RPA) e se inaugurou a Segunda República (RA).
Sem pretender estabelecer uma relação directa de causa-efeito na verdade, atrevo-me a fazer este flashback histórico, o 27 de Maio aconteceu um ano depois de se terem realizado em Luanda as primeiras eleições no pós-independência, que foram as eleições para as comissões populares de bairro, que na época ficaram conhecidas como as eleições do poder popular.
O poder popular que Santocas já havia cantado em 74/75 que era a causa de toda esta confusão.
Dizer que as eleições em Angola são uma festa ou são a festa da democracia, só se for em registo de “stand up comedy” e mesmo assim continua ser uma piada de mau gosto, por tudo quanto temos vindo a ser testemunhas oculares.
Incluir a paz como principal referência do marketing político das eleições, como voltou a acontecer este ano, é bem o sintoma de uma crise de curto prazo que se anuncia, sempre que o calendário aponta para a renovação de mandatos.
Vinte anos depois das armas se terem calado e de objectivamente já não haver qualquer condição do país regressar a um confronto militar tal como havia em 1992, aparentemente já não se devia justificar este relacionamento directo entre o voto e a paz, mas o que é facto é que CNE aí está mais uma vez a recordar-nos que devemos antes de mais votar pela paz, (depois pela democracia e só em terceiro lugar pelo desenvolvimento) como se existisse alguém que quisesse fazer das eleições algo diferente daquilo para que elas servem, que é tão-somente legitimar o poder político de forma periódica que no nosso caso é de cinco em cinco anos. Em 2017 se bem me lembro o lema adoptado pela CNE foi quase o mesmo.
Convenhamos que as eleições em Angola são de facto o pior momento e com mais incertezas e angustias, que o país vive, sempre que as mesmas são convocadas, sendo aqui que a média e os jornalistas entram e em força na hora de agravar ainda mais o panorama e as perspectivas em obediência à sabedoria do Dikota Murphy para quem nada está tão mal que não possa piorar ainda mais.
O que é ainda mais paradoxal neste relacionamento é que a legislação eleitoral angolana é taxativa no que diz respeito ao papel da média, definindo-o como devendo ser rigorosamente neutro/imparcial em relação aos concorrentes, contrariamente a outros ordenamentos como é o norte-americano, onde tudo em matéria de tomar partido e fazer campanha na média é permitido e incentivado, ao ponto dos anúncios publicitários nas televisões ultrapassarem a casa dos vários milhões de dólares por minuto no pequeno/grande écran que é cada vez mais lucrativo nestes períodos, para quem gere o negócio do áudio-visual.
Conhecedor da realidade, por isso desconfiado do papel da média e dos jornalistas, o legislador não poderia ter sido mais cauteloso na formulação de um conjunto de normas que impedem que o tal quarto poder entre em jogo para alinhar com este ou aquele concorrente, desequilibrando completamente a partida.
É o que tem acontecido, é o que está novamente a acontecer este ano, para não variar.
Como novidade já tivemos em cena um jornalista com responsabilidades editoriais na média pública afirmar alto e em bom som que o tratamento que se dispensa a uns, que é apenas um, não pode ser o mesmo que se dispensa aos outros, que são os restantes, ou seja que são todos aqueles que estão na oposição.
Antes de mais a realidade é caracterizada pela existência de um sector estatal da média que é dominante à escala nacional, situação que se agravou agora, sobretudo depois da Zimbo ter sido engolida pelo mesmo patrão Estado na sequência de tudo quanto já é do conhecimento de todos.
Já o disse várias vezes, mas sinto que nunca é demais reiterar esta minha tese, segundo a qual, se os princípios de uma gestão editorial realmente jornalística prevalecessem entre nós, este sector público pela sua abrangência seria o principal garante de uma cobertura isenta, retirando-se assim da equação a intervenção da comunicação social como um factor de conflito permanente, o que continua muito longe de acontecer.
Pelos vistos, o desempenho deste ano vai ser mais problemático do que o que se verificou nas disputas eleitorais precedentes, a confirmar apenas o princípio já aqui enunciado segundo o qual nada está tão mal que não possa ficar ainda pior.
O escandaloso boicote ou blackout decretado por toda a média pública contra a iniciativa denominada “Congresso da Nação”, foi um ensaio bastante assertivo de como é que as coberturas jornalísticas não vão acontecer para os restantes, por mais que eles tussam ou protestem, por mais que eles peçam algo a que têm direito.
Quanto às coberturas que vão acontecer e como vão acontecer, os ensaios também já foram feitos com os generosos espaços que estão a ser concedidos aos actos da pré-campanha eleitoral do MPLA e do seu candidato, que de tão generosos, acho que os próprios beneficiados se devem ter sentido ligeiramente incomodados, mas sem nunca terem apresentado qualquer reclamação por tanta simpatia.
Afinal de contas neste país existe liberdade de imprensa não sendo muito aconselhável interferir na gestão editorial de cada órgão.
Resumindo tais normas para termos rapidamente uma ideia do conjunto do ordenamento começaríamos pelo dever que é extensivo aos públicos e privados e seus respectivos jornalistas de agirem com rigor, profissionalismo e isenção em relação aos actos das campanhas eleitorais.
Como primeira proibição que é igualmente extensiva a todos, destacamos aqui que por lei nenhum órgão, incluindo os da imprensa escrita pode difundir matérias com caracter propagandístico e eleitoral de qualquer dos concorrentes, fora dos tempos de antena que a rádio/10 minutos e a televisão/5 minutos cedem diariamente a cada um dos participantes durante a campanha.
Esta norma é aquela que é mais ostensivamente violada ou seja que voltou a ser violada, pois a sua combinação tem de ser feita com a outra norma que proíbe qualquer actividade de propaganda eleitoral fora do prazo da campanha que ainda não começou.
Admitindo que a pré-campanha eleitoral já em curso é uma actividade legítima dos partidos no âmbito da sua liberdade de comunicar e de fazer política a tempo inteiro, o mesmo já não podemos dizer da propaganda eleitoral feita através dos órgãos de comunicação social, como são os spots televisivos onde se faz a mobilização para os comícios e outras actividades conexas.
A lei chega ao ponto de interditar a propaganda política feita directa ou indirectamente através dos meios de publicidade comercial.
Em matéria de restrições, mais importante ainda é a proibição de qualquer órgão posicionar-se a favor de qualquer dos concorrentes nas matérias que publicar, sendo nesta norma que reside a essência do papel que é atribuído aos “média” no seus relacionamento com os partidos.
Percebe-se pois com todas estas restrições e proibições expressas, às quais se junta uma quase invisível Entidade Reguladora criada para supervisionar e fiscalizar a sua a aplicação, que o legislador angolano sempre olhou para a média com muitos receios, que, lamentavelmente, a força da legislação em vigôr não tem sido capaz de ultrapassar, o que mais uma vez se confirma com tudo quanto já aconteceu neste ano eleitoral que está já a virar a primeira metade do seu tempo disponível.
Dito tudo isto, sabendo que muito mais haveria para dizer na identificação dos factos que aqui foram arrolados, convenhamos temos aqui um problema com o papel da média e dos jornalistas nesta fase crucial da vida de qualquer regime democrático que são as eleições periódicas.
O problema, sempre o disse, é evitar que os gestores e a gestão do espaço mediático se transformem também numa referência permanente do próprio debate político eleitoral que é o que tem acontecido, que é o que está a acontecer.
E assim acontece por ser a parte mais visível do processo eleitoral e que está ao alcance de todos sem excepção, por isso todos têm opinião formada sobre a sua prestação.
Daí, que todas as cautelas, para além das que já estão previstas na lei, sejam absolutamente justificáveis para se evitar que as atenções se voltem para este concorrente que não passa pelo Tribunal Constitucional.
Mesmo não fazendo parte do boletim de voto, a média e os jornalistas são de facto um forte concorrente em qualquer processo eleitoral, por ser aquele de que do que todos os outros dependem directamente.
Data de Emissão: 09-06-2022 às 10:00
Género(s): Comentário, Discurso
 
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