Café da manha, Edição com Guilherme Mogas
Guilherme Ysenbout Mogas, aos 70 anos, tem uma vida tão preenchida de realizações e peripécias que dava para escrever uma bem nutrida autobiografia ou um livro de memórias. Inventor certificado, patentou, entre outras invenções, um “sistema de visão para cegos”, um “colchão ventilável”, um “sistema de segurança por infravermelhos ou ultra sons para viaturas especialmente automóveis contra acidentes” e, mais recentemente, um “dispositivo de combate a incêndios” na forma de um drone, que está em fase avançada de testes em Portugal para sua eventual adopção pelos Bombeiros.
Em 1971. Quando surge o 25 de Abril de 1974 eu estava na Rádio, na área técnica, e depois faço a transição para Angola Independente.
criámos um grupo de inventiva na RNA, que tinha essa capacidade de arranjar soluções. No grupo havia o Domingos das Neves, que comungava muitas das minhas ideias e era um técnico brilhante, que deu muita ajuda numa altura em que era precisa muita criatividade. Muitos de vós estão a sentir agora o que é a guerra através do que se diz da Ucrânia… Na guerra a primeira coisa que acontece são os cortes de energia e do abastecimento de água. Sabe o que é fazer radodifusão em Angola com 22 emissoras sem energia eléctrica? Foi preciso uma dose muito grande de resiliência. Quando eu era director e ia para as províncias eu costumava dizer que era um mendigo, no bom sentido, de gasóleo. Eu saía directo do avião para a delegação da Sonangol pedir “por favor, queremos gasóleo, queremos gasóleo”, porque era tudo feito a gasóleo. E a Sonangol para pôr em determinadas províncias gasóleo era muito complicado. E sabe que a dada altura houve uma sabotagem na refinaria de Luanda, que ardeu durante vários dias… Enfim, era um objectivo militar. A situação esteve mesmo complicada. Nesse ambiente fazer radiodifusão exigia uma imaginação muito grande e eu tinha aquele grupo de pessoas com enorme criatividade. Conseguimos resistir e transformar a RNA no que é hoje.
Aos 70 anos fui promovido a coordenador. Eu e a Luísa Fançony somos os coordenadores do projecto. Os jornalistas, de uma maneira geral, e os que estiveram connosco nessa “aventura” desde a Independência até 1992 diziam-nos sempre que tínhamos que deixar um legado às novas gerações e que nós é que tínhamos a autoridade moral e a capacidade de coordenar porque estivemos em todos os momentos. Infelizmente muitos dos nossos companheiros que também fizeram essa trajectória já faleceram e coincidentemente somos dos poucos que estão vivos. Olha que no lançamento do livro encontrei o meu grande amigo Lucrécio de Jesus Martins da Cruz. Nos autógrafos do livro fui escrevendo “Fui o culpado”, “Assumo, fui o culpado”…
Culpado de quê?
Porque apareceram pessoas que diziam “O senhor Mogas foi o culpado de eu ter ficado na Rádio e ter feito a trajectória que fiz”… Foi-nos pedido por alguns jornalistas que coordenássemos a obra, que tem depoimentos dos que fizeram toda aquela gesta da RNA. Depois do livro feito e após algumas situações que vivi, cheguei à conclusão que devíamos ter feito um capítulo dedicado ao apoio que nós demos aos movimentos de libertação da África Austral e não só. Incrivelmente, no dia 5 de Outubro passado recebi uma mensagem, que para mim é muito comovente, de Timor Leste, a dizer “é o vosso dia e o povo maubere quer agradecer…” Para mim que saí da Rádio há trinta anos! O programa da FRETILIN [Frente Revolucionária de Timor Leste Independente] era feito cá e ia para o ar em ondas curtas. Tive também um incidente, que para mim foi uma espécie de certificado de habilitações, quando há cerca de quatro ou cinco anos visitava a África do Sul com a família, em turismo. Fui visitar a cadeia onde Mandela esteve preso, na ilha de Robben. Quem fazia de guia eram antigos colegas de cárcere de Mandela. Éramos um grupo de montes de turistas, principalmente europeus e americanos. Depois de se fazer a visita o guia perguntou “quem tem dúvidas?”. Toda a gente perguntou coisas das mais díspares e eu só fiz uma pergunta: “Vocês ouviam o programa radiofónico do ANC?”. E ele respondeu: “No meio das restrições que tínhamos aqui, era a única luz ao fundo do túnel”. E perguntei mais: “Vocês sabem onde é que era emitido o programa do ANC?”. “Da África do Sul é que não, senão as autoridades do apartheid localizavam e partiam tudo”, respondeu o guia. Então expliquei: “O programa era emitido de Angola, da Rádio Nacional de Angola e eu era o director”. O senhor meteu o dedo no ar e disse, com lágrimas nos olhos: “Tu ajudaste a nossa libertação!”. Abraçou-me e todos aqueles turistas não conseguiam perceber o que se passava. Isto é o maior certificado de habilitações que eu transmito aos meus filhos. É que estivemos do lado certo da História.