Edição de 22 de Junho de 2022
VENDEDORES USAM LICENÇAS DAS FARMÁCIAS PARA SE ABASTECEREM NOS DEPÓSITOS
Um levantamento do Sindicato dos Médicos em Angola constatou que uma receita que pode custar 18.500 Kz numa farmácia é comprado por 2.000 Kz no mercado clandestino dos Kwanzas, município do Cazenga, um valor nove vezes mais baixo.
Graciete Xavier – Jornal Expansão
20 de Junho 2022
Venda ilegal de medicamentos continua em Luanda 12 anos após proibição
“Temos todos os medicamentos que a senhora quiser. “Esta é a frase ouvida por todas as pessoas que entram no portão principal daquele que já foi considerado um dos maiores mercados de venda ilegal de medicamentos, o Mercado dos Kwanzas, situado no município do Cazenga. A venda, que foi proibida em 2011, ocorre de maneira clandestina, mas à vista de toda a gente, e é usada por centenas de pessoas que encontraram aqui o seu “ganha-pão”.
Apesar de ilegal, é nos depósitos de medicamentos que os vendedores se abastecem. Usam as licenças das farmácias para adquirir os fármacos que depois vendem, sem qualquer critério ou rigor na comercialização. Mesmo os que compram medicamentos sujeitos a receita médica conseguem comprar o fármaco. A venda ilegal e avulsa de medicamentos persiste em Luanda, apesar de ser proibida a comercialização de fármacos fora das farmácias, desde 2011.
Centenas de pessoas dedicam-se a este negócio, como constatou o Expansão, durante uma ronda no mercado dos Kwanzas. Apesar da venda ser feita de maneira clandestina o Expansão soube, durante uma conversa com algumas vendedoras de roupa do fardo que vendem neste mesmo mercado, que os medicamentos ficam empilhados num quintal não muito longe do mercado, expostos ao sol, alguns até fora do prazo de validade. Há ainda casos de vendedores que deixam a mercadoria nas próprias casas, por medo de a polícia descobrir a existência destes quintais.
Ao chegar ao Mercado dos Kwanzas, é notória a presença de vários homens espalhados pela entrada, que vão atrás de quem chega. Todos eles sussurram aos ouvidos a variedade de medicamentos que têm para oferecer e garantem que os medicamentos estão em bom estado. “Temos todo o tipo de medicamentos. Qual a senhora quer? Podemos vender com receita ou sem receita. É só dizer que dores sentes que eu vou-te vender o medicamento certo e a dor vai passar”.
Estas foram as frases soltas pelo senhor Jacinto, vendedor de medicamentos há mais de 22 anos no Mercado dos Kz. A todo custo o homem tentou convencer-nos a comprar medicamentos. Sob disfarce, com a intenção de obter informações, a equipa de reportagem apresentou-se como proprietária de uma farmácia nova, que precisa de se abastecer. Passada a informação, o senhor Jacinto e outros colegas empolgaram-se a explicar rapidamente como funciona o negócio e, sem qualquer receio, desvendaram os segredos do negócio. “Os medicamentos são comprados nos depósitos certificados pelo Ministério da Saúde, compramos com a licença das farmácias e depois voltamos a revender os medicamentos para elas. A verdade é que a compra de medicamentos nos depósitos só pode ser realizada se for em grandes quantidades e nem sempre as farmácias querem comprar grandes quantidades, porque na maioria dos casos só querem aumentar o stock. Por esta razão, ela nos entrega a licença, nós compramos em grandes quantidades e revendemos aqui no mercado dos Kz e nas próprias farmácias”, explicou Jacinto.
O vendedor, que é oriundo da República Democrática do Congo, veio para Angola há 30 anos à procura de melhores condições de vida. Esteve na província do Uíge, mas o principal objectivo era chegar à capital, onde acreditava que encontraria uma fonte de rendimento para o sustento dos quatro filhos. Hoje, como um dos vendedores mais antigos do mercado, esclarece que a venda de medicamentos acontece de forma clandestina, porque a Polícia Económica aparece com bastante frequência e se alguém for encontrado a vender é multado. O valor da multa chega até aos 316 mil Kz.
Mário, outro vendedor, diz que o mercado recebe clientes que vêm à procura de todo o tipo de medicamentos, desde fármacos a produtos tradicionais, e até aquilo que os vendedores chamam de “medicamentos secretos”. Estes últimos não são vendidos nas bancadas, por medo polícia. Por esta razão, os vendedores ficam à porta do mercado para chamar os clientes e assim que dizem o que querem vão buscar o medicamento que fica no “processo” (quintal ou armazém onde ficam guardadas as mercadorias que são vendidas nos mercados informais, desde roupa, calçado, comida, fruta e também medicamentos, que ficam em condições impróprias para consumo face à grande exposição ao calor).
Santos Nicolau, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos de Angola, diz que o comércio de remédios nos mercados informais está longe de acabar, devido ao seu baixo preço. Outros recorrem a eles por não terem receita médica.
Um levantamento do Sindicato dos Médicos em Angola permitiu constatar que uma receita que pode custar 18.500 numa farmácia chega a ser comprada por 2.000 Kz na clandestinidade. Este esquema não envolve apenas os vendedores e os proprietários das farmácias. Segundo Santos Nicolau, os gerentes dos depósitos de medicamentos, em muitos casos, até vendem os medicamentos aos comerciantes sem licença das farmácias, com o objectivo de vender com maior rapidez.
“Isso é um esquema que convém aos donos dos depósitos dos medicamentos. Há depósitos que só têm cinco clientes oficiais, o que faz com que os produtos demorem mais tempo para sair. O que esses gestores fazem é conseguir pelo menos mais 20 comerciantes informais, a quem vendem a um preço mais baixo em relação às farmácias, garantindo sempre o lucro. Isto é uma máfia”, resumiu.