Conversas 4.1, edição com Ana Cristina Cangombe
Conversas 4.1, edição com Ana Cristina Cangombe.

Ana Cangombe nasceu na província do Bié, no mês de Novembro de 1973, com a pele morena, lisa e sem manchas. O tempo passou, e à medida que crescia, tornava-se cada vez mais atraente, dona de traços finos e de um corpo esbelto.

Veio a adolescência e, depois, a juventude, altura em que a biena formou-se em Engenharia de Sistemas Informáticos, arranjou emprego, casou e fez dois filhos. Até à essa altura, a pele de Ana continuava linda.

Mas, como o corpo humano é uma “caixinha de surpresas”, a bela morena não sabia que, afinal, o seu organismo já tinha uma predisposição genética para desenvolver o vitiligo de forma tão rápida, muito embora, até ao momento, fosse a única na família a ter a patologia.

Aos 35 anos, Ana Cangombe viu, pela primeira vez, o surgimento de uma mancha clara no pescoço, parecendo-se a um cordão, que não dava dores nem causava grande incómodo. E a pinta ficou aí intacta sem se alastrar durante alguns anos.

Por isso, ela não recorreu a tratamento algum. Só entre Agosto de 2019 e Abril de 2020 que o corpo de Ana começou a descolorar (despigmentar), problema que afectou o rosto, com manchas escuras também.

E, assim, ela descobriu a patologia. Depois dessa fase, em menos de um ano, o vitiligo atingiu quase 100 por cento do corpo de Ana Cangombe. “Aquilo foi um choque tão grande para mim, porque sabia pouco sobre a doença. Eu me negava a aceitar que a minha pele morena tinha se transformado nisso que sou hoje”.

Mas, não só ficou chocada com o problema da despigmentação. A reacção dos colegas de serviço, vizinhos e pessoas com as quais cruzava na rua era, igualmente, surpreendente. Isso a deixava ainda mais frustrada e ansiosa ao ponto dela desenvolver uma depressão profunda.

“Por duas vezes, já pensei em jogar-me do 12º andar do edifício onde trabalho (na Mutamba), só para acabar com o sofrimento…era muita discriminação”, lamentou em prantos.

Por conta dessa depressão e ansiedade, além do dermatologista, que atenua as manifestações da doença da pele, Ana é, também, acompanhada por um psicoterapeuta e psiquiatra. Estes profissionais têm ajudado bastante para reduzir os níveis de depressão, stress, ansiedade e fazer ela aceitar a doença.

Aliás, é por causa dos níveis elevados de stress e ansiedade que o vitiligo de Ana despoletou de forma tão agressiva, segundo a médica que a acompanha. Nessa altura, ou seja, em 2019, a jovem tinha sido submetida a uma cirurgia delicada no fígado, em França.

“A médica disse que eu já tinha uma predisposição genética e, apesar da doença nunca se ter manifestado na infância, o meu vai e vem entre Angola e França, e, por causa do fígado, que podia desenvolver um cancro, provocou-me transformações emocionais e despoletou o que estava escondido”, explicou.

Hoje, com 48 anos, Ana Cangombe aceitou a doença e faz tratamento dermatológico para voltar à coloração normal da pele. Essa batalha a levou a criar a Associação das Pessoas Portadoras de Vitiligo, onde ela dá a cara sem preconceito, no sentido de ajudar mais indivíduos a atenuar os efeitos da doença.

Com vista a voltar a ter a pele pigmentada, Ana usa o “protopik”, loção indicada para o combate do vitiligo, mas, também, apanha sol a certas horas do dia conforme recomendação médica, recorre ao protector solar e a sabonetes específicos de protecção da pele, que, por falta da melanina, se torna vulnerável a infecções.

Sofrer por discriminação 

Se no corpo de Ana, as primeiras manchas de vitiligo começaram a aparecer já adulta, em Nelma Mucacava, os sinais iniciais surgiram aos oito anos. A mãe quando viu uma coloração diferente nos lábios da menina levo-a ao médico.

Depois de uma biopsia, diagnosticou-se o vitiligo. Dessa essa altura, deu início à medicação, para cortar ou diminuir a velocidade da propagação da doença. Mas, em 2018, as pontas dos dedos das mãos e dos pés de Nelma foram abrangidas pela despigmentação de forma tímida.

Por isso, procurou um dermatologista, em Portugal, que reconfirmou a presença do vitiligo no corpo. Apesar da mediação, em 2020, a perda da pigmentação passou a ter uma velocidade mais intensa, estando hoje em cerca de 70% do corpo da jovem.

Nelma Mucacava, que sofre de vitiligo, há 20 anos, é jurista e trabalha num dos tribunais de Luanda. Apesar do apoio do marido e dos dois filhos, a senhora não conseguiu controlar de todo a ansiedade e a depressão.

“Por isso, quando me senti fortemente discriminada, por exemplo, pela ignorância de uma constituinte no tribunal, que se assustou com a minha actual imagem e de forma tão grosseira na presença de tanta gente, meu mundo desabou. Na hora, deixei tudo que tinha a fazer e voltei para casa, fechei-me no quarto e não queria ver nem ouvir ninguém, durante uma semana completa”.

Recorda que era um misto de emoções negativas na sua mente. A situação ficava mais complicada quando, até, a filha menor se assustasse ao ver a quantidade de manchas no corpo em alta progressão.

O peso da conexão com Deus

Nelma conta que só conseguiu voltar a encarar as pessoas e o trabalho, graças ao apoio que recebeu da igreja. “A minha conexão com Deus ajudou-me a ver que é uma doença e qualquer um de nós pode desenvolver isso, basta ter disposição genética para o efeito”, salientou.

A senhora realça que é, igualmente, a única a sofrer de vitiligo no seio da família, que mais a apoia e de forma incondicional.

Dada a sua simpatia nas relações, uma psicóloga, que lhe prestou apoio emocional, apresentou-a à presidente da Associação das Pessoas com Vitiligos e, actualmente, Nelma desempenha as funções de secretária no grupo.

Nelma faz a medicação de vitiligo com protopic, dermovate, usa protector solar e tem sabonete específico para os banhos. Também já foi submetida a várias sessões de fototerapia, no Hospital Américo Boavida, para devolver a pigmentação à pele.

“Fui acusado de feiticeiro”

Se Nelma e Ana conheceram o vitiligo já crescidos, tudo indica que Lívio Semedo tenha nascido com a doença. Quando nasceu, tinha uma mancha, que, por falta de conhecimento sobre a patologia, dizia-se apenas que era “marca de nascença”.

Quando foi crescendo, a partir de 1997, enquanto estudante em Portugal, Lívio deu conta que as manchas claras do pé estavam a alastrar-se, o que aumentou a sua preocupação.

A irmã mais velha levou-o ao médico e, depois de alguns exames, o jovem recebeu a informação de que as manchas tinham a ver com vitiligo. E, também, soube que a doença não tem cura.

Com o passar do tempo, as manchas atingiram o rosto de Lívio, mas, convencido de que a doença não cura, contentou-se e aceitou a enfermidade.

Um dia, foi dar um passeio à Espanha e conheceu uma jovem que o aconselhou a visitar Cuba, numa altura em que esteve naquele país o cientista que descobriu a medicação para o vitiligo.

“Em Cuba, fui medicado com Melagenina Plus, que é o fármaco de topo, indicado para o tratamento do vitiligo. Além deste líquido, uso o protector solar, sabonete e outros cuidados para que a pele volte a pigmentar ou atenuar os afeitos da doença”, disse.

Aos 43 anos , Lívio Semedo vive com a doença em 40% do corpo. Graças à medicação que faz há 25 anos, a velocidade do alastramento das manchas tem sido reduzida. Mas, as mãos estão completamente descoloradas.

“Um dia, cumprimentei uns jovens no prédio onde eu vivia, na Maianga, e um dos meninos, depois disso, limpou as mãos como se eu tivesse uma doença contagiosa”, queixou-se do caso de discriminação.

No interior do país, nessas andanças da associação, quando parasse para comprar alguma coisa, disse que as pessoas olham-no com desdém e uns fogem. “Já me disseram que sou feiticeiro e, por isso, se afastam de mim. É uma situação muito dolorosa”, desabafou Lívio, actual vice-presidente da Associação dos Vitiligos.

Causas ainda por esclarecer

O médico dermatologista Juliano Isaías definiu o vitiligo como uma doença caracterizada pela perda da coloração da pele, em que as lesões se formam devido à diminuição ou ausência de melanócitos (células responsáveis pela formação da melanina, pigmento que dá cor à pele) nos locais afectados.

Juliano Isaías, que é director dos Serviços de Dermatologia do Hospital Américo Boavida, explicou que as causas da doença ainda não estão claramente estabelecidas, uma vez que pode ser desencadeada por factores genéticos, quando alguém na família tem a doença há possibilidade de uma outra vir a desenvolvê-la.

Mencionou, ainda, factores imunológico e auto-imune, quando o próprio corpo, através de seu sistema de defesa, degrada o pigmento da pele, bioquímico relacionado ao metabolismo humano.

Também estão na base da doença os oxidativos, que têm a ver com os danos celulares e envelhecimento da pele e, por último, os factores ambientais, que podem causar o stress emocional, depressão e transtornos de ansiedade.

O médico realçou que a diabetes milites, problemas na tiróide e outras doenças auto-imunes podem, igualmente, influenciar o surgimento do vitiligo, caso haja predisposição genética para tal.

O dermatologista frisou que a doença é caracterizada por lesões cutâneas de hipopigmentação da cor (diminuição da cor), com manchas brancas de tamanho variável na pele.

Juliano Isaías avançou que existem dois tipos da doença: o segmentar ou unilateral e o não segmentar ou bilateral. O primeiro se manifesta apenas em uma parte do corpo, geralmente ocorre quando o paciente ainda é jovem. Já o segundo, é o mais comum dos vitiligos e actua em dois lados do corpo, ou seja, pode afectar, simultaneamente, as duas mãos, dois pés, dois joelhos.

O dermatologista explicou que as manchas de vitiligo surgem inicialmente nas extremidades como mãos, pés, nariz e boca. “Existem épocas em que a doença se desenvolve, e depois há períodos de estagnação. Isso acontece durante toda a vida, sendo que as áreas despigmentadas tendem a se tornar maiores com o tempo”.

O médico realçou que o vitiligo não é contagioso e não causa prejuízos à saúde física. Mas, as manchas têm um grande impacto na qualidade de vida e na auto-estima do paciente. Por isso, muitos doentes também são acompanhados por psicológicos e, em alguns casos, por psiquiatras mesmo.

Realidade no país

Em Angola, não existem muitos casos de vitiligo, disse o médico Juliano Isaías. Por exemplo, no Hospital Américo Boavida, a única unidade pública que assiste pacientes com este problema, são recebidos, em média, quatro a cinco pacientes, seguidos durante um ano.

“Mas, é possível que o número seja um pouco maior, porque é uma doença muito estigmatizada e, em algumas zonas do país, associam à feitiçaria, talvez, por isso, muitas famílias escondem os pacientes com medo de serem marginalizados ao chegarem aos hospitais”, disse o médico.

Nesse hospital, o diagnóstico da doença é feito por meio de exames clínicos, que podem durar duas semanas para se ter os resultados. Por norma, realiza-se uma biopsia para determinar se é vitiligo ou outra doença.

“Também podemos recorrer à lâmpada de Wood, uma técnica utilizada para se determinar o grau de extensão da lesão dermatológica, bem como para avaliar as suas características”, avançou o médico.

Quanto à medicação para atenuar os efeitos do vitiligo, Juliano Isaías referiu-se à fototerapia, que dependendo do nível das lesões, tem de ser feita em 35 sessões no máximo, por conta dos raios que são emitidos. Ou pode se recorrer aos corticoides, ultravioleta B de banda estreita (UVB) ou psoraleno e algumas como o Protopic, Dermovate.     

Prevenção versus histórico familiar

O dermatologista explicou que não existe formas para prevenir o vitiligo. Para desenvolver a doença, é preciso ter disposição genética para efeito. Estudos indicam que por detrás de cerca de 30% dos casos há um histórico familiar da doença.

“Por isso, as famílias que tenham alguém com vitiligo devem realizar vigilância periódica da pele e recorrer ao dermatologista, caso surjam lesões de hipo-pigmentação, a fim de detectar a doença precocemente e iniciar o tratamento”, alertou.

Para os pacientes com vitiligo, o especialista aconselha a evitarem os factores que possam precipitar o aparecimento de novas lesões ou acentuar as já existentes, com destaque para o uso de roupas apertadas ou que provoquem atrito ou pressão sobre a pele, exposição ao sol, stress e a ansiedade.

Apoio psicológico é fundamental

O psicólogo Pedro Viegas esclareceu que o vitiligo está muito ligado a questões emocionais, devido à modificação que a pele sofre.

Pedro Viegas reconhece que se está diante de uma sociedade altamente preconceituosa, e as pessoas com vitiligo são fortemente estigmatizadas. “Por isso, muitas delas se isolam, se sentem estranhas, diferentes, irritam-se com facilidade e desenvolvem uma tristeza contínua”.

Em função disso, o especialista chamou a atenção para a necessidade de um acompanhamento com psicólogo ou psiquiatra, tendo em conta que os pacientes acabam por desenvolver depressão profunda, que pode levar ao suicídio.

“A sociedade deve, também, tomar consciência das várias doenças que existem e ser mais solidária com as pessoas acometidas por elas. Qualquer um de nós pode ser afectado por essas enfermidades”, realçou.

Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) refere que um por cento da população mundial sofre de vitiligo. E o Dia Mundial de Combate ao vitiligo foi escolhido pela Sociedade Médica Internacional para alertar e consciencializar a população a respeitar a doença, especialmente para acabar com as manifestações de preconceito.

Data de Emissão: 23-08-2023 às 07:00
Género(s): Entrevista
 

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